A Gentalha do Pichel, junto com a Fundaçom Artábria, O Quilombo, o Faísca, a Galleira, o Mádia Leva! e o Colectivo Terra, tinhamos preparado um tríptico sobre a figura de Carvalho Calero para repartir entre as estudantes dos liceus da Galiza. A situaçom de confinamento impediu-no-lo, mas partilhamos aqui o nosso texto:
CARVALHO CALERO E ISSO QUE NOM CHE QUEREM CONTAR DEL
Como pode ser que demorassem 30 anos desde a sua morte em dedicar-lhe o dia das letras galegas ao primeiro catedrático de Língua e Literatura Galega da história? Talvez a sua produçom literária nom foi mui importante? Nove livros de poemas, oito peças de teatro, oito romances e inumeráveis ensaios de temática literária, filológica e sociolinguística de grande qualidade parecem apontar o contrário. De feito, Carvalho Calero foi sempre finalista na eleiçom da pessoa homenageada no dia das Letras Galegas desde 2014. Sempre perdeu, até este ano.
A razom pola que a Real Academia Galega demorou tanto em dedicar-lhe o dia das letras é porque Ricardo Carvalho Calero era reintegracionista. Ou seja, defendia que o galego e o português som duas variantes da mesma língua e que, com as suas particularidades, devem ser escritas de jeito similar. E isto é um problema no seio da RAG, onde há gente que defende a sua figura (sem por isso defender a sua visom linguística) e outra que directamente a repudia.
Carvalho escrevia do mesmo jeito que está escrito este texto. Fazia-o nom só por umha razom práctica (gozar da possibilidade de aceder a umha comunidade linguística de mais de 300 milhons de pessoas em todo o mundo), mas também por umha razom filológica: queria escrever o nosso idioma atendendo à etimologia das palavras, à sua origem. Nom che parece estranho que umha palavra que vem do grego “ge”, terra, e “grapho”, gravar, seja escrita em alemám “geographie”, em francês “géographie”, em catalám e em italiano “geografia”, em castelám “geografía” e em galego “xeografía”. Em que momento da “evoluçom” linguística galega o g se transforma em x? A resposta é… em ningum.
Como sabes, o idioma galego nom se escreveu durante 500 anos, os Séculos Escuros, e, quando se voltou a escrever, as escritoras que o fam escrevem com a ortografia em que foram alfabetizadas, é dizer, a castelá. Por isso nom usam as letras ç, j, ou os dígrafos nh ou lh, que che soaram de vê-los em textos medievais nas aulas de língua galega. Vestem o galego com as roupas castelás, entre outras cousas, porque a maioria de textos medievais galegos eram desconhecidos e guardam-se fora da Galiza actual. Para Carvalho e as reintegracionistas, escrever como o faziam significava reivindicar umha língua autónoma e com continuidade histórica. A RAG, da que el fazia parte desde os anos 50, joga um papel fundamental no estabelecimento da outra normativa na década de 80. Houvo muito debate naquela etapa, mas a postura de Carvalho perdeu e el e as reintegracionistas acabarom marchando. E daí vem o conflito.
Provavelmente muitas das cousas que acabas de ler já as sabias. Melhor ou pior explicadas, venhem nos livros. Com certeza também escuitache isso de que os livros os escrevem os ganhadores, e Carvalho nom foi um ganhador. De feito, umha das partes mais importantes da sua biografia é que tomou partido, de maneira decidida, polo bando republicano na Guerra Civil. Estava em Madrid, presentando-se às oposiçons a catedrático de ensino secundário, quando tivo lugar o golpe de estado do 1936, e participou na defesa dessa cidade como miliciano. Ascendeu a oficial e foi detido em 1939 e condenado à prissom. O habitual na sua situaçom teria sido ser condenado a morte, mas a sua família tinha um contacto dentro do régime que o evitou. Quando ficou livre, conseguiu um trabalho no colégio privado Fingoi de Lugo, pois o ensino público estava-lhe vetado. Viveu muitos anos da dictadura em liberdade controlada. Este compromisso antifascista também resulta incómodo para quem teima em ignorar as demandas de democratizaçom das estruturas do Estado, absolutamente continuistas depois da morte do dictador, que mesmo designou o Jefe do Estado, esse ao que agora lhe atoparom umhas contas em Suíça.
A biografia de Carvalho já a conhecerias, mesmo pode que nalgum exame che perguntassem por ela. A incomodidade que desperta seguro que já a intuías. Talvez também intuas outra cousa que os livros nom acabam de contar bem. E é que essa “teima” sua por “escrever diferente” nom foi umha anedota do final da sua vida. Muitas outras autoras e autores tenhem defendido a unidade linguística galego-portuguesa ao longo da história, como Joám Manuel Pintos, Manuel Murguia, Afonso Daniel Castelao, Vicente Risco, Álvaro Cunqueiro, Ramom Outeiro Pedraio, Antom Vilar Ponte, Eduardo Pondal, … É mais, actualmente, o reintegracionismo continua a crescer na Galiza, porque tem um sentido histórico e porque tem um sentido linguístico. Para as pessoas reintegracionistas o galego é a nossa língua e reivindicariamos o seu uso ainda que fossemos só dous milhons de falantes no mundo. Com a mesma dignidade que as falantes do mapuche, do inglês, do suaíli ou do abinomn. Mas o caso é que o falamos 300 milhons, e nom queremos que nos fagam renunciar a isso.
Com as nossas diferenças, o galego fai parte dum conjunto de variantes linguísticas que se falam em muitas partes do mundo. Existem menos diferenças entre o português do Brasil e o galego que entre o árabe que se fala em Marrocos e o que se fala na Palestina. Ou entre o espanhol que se fala em Andaluzia e o que se fala em Puerto Rico, mui contaminado pola pressom do inglês. Às vezes a incompreensom também vem derivada da incomunicaçom. Por isso o PP leva anos a negar a possibilidade de receber televisons portuguesas e brasileiras na Galiza. Nom penses que som melhores que as espanholas, mas som diferentes. Dumha banda, quase nom se escuita nelas o castelám. E doutra, nom estám ao serviço do projecto nacional espanhol. É mais do que se pode dizer da actual TVG.
Mas voltando a Carvalho. Todo isto que acabas de ler é só o prólogo do que realmente che queriamos dizer neste pequeno tríptico. Dim que os livros os escrevem os ganhadores, sim, mas este textinho está escrito por um conjunto de colectivos que defendem as mesmas ideias sobre a língua que Carvalho Calero. E isso, precissamente isso, é o que nom che contam de Carvalho. Que as suas ideias reintegracionistas prendérom em pessoas e colectivos de toda a Galiza. Em escritoras como Charo Lopes, Séchu Sende, Susana Sánchez Arins, Teresa Moure, Marcos Abalde, em editoriais como Através, Ardora ou Abrente, em associaçons linguísticas como a AGAL e a Associaçom de Estudos Galegos, em bandas de música como Caxade, Liska!, Os Novos, Rebeliom do Inframundo, Tecor Societário, The Brosas, em cantoras como Ugia Pedreira, em jornais como o Galiza Livre, o Diário Liberdade, ou o Novas da Galiza, em iniciativas desportivas como a Liga Gallaecia de futebol gaélico, em projectos educativos como as Escolas de Ensino Galego Semente, e em centros sociais e associaçons como o Faísca, de Vigo, o Fuscalho, da Guarda, o Gomes Gaioso, da Corunha, o Mádia Leva!, de Lugo, a Revolta do Berbés, de Vigo, o Pichel, de Compostela, Xebra!, de Burela, e Artábria, de Ferrol. Nos colectivos que assinamos estas linhas e em muitas outras pessoas e iniciativas que, com certeza, esquecemos.
Reivindicamos a figura de Carvalho polo seu compromisso com o galego, com a Galiza e com o antifascismo. Longe de mitificaçons, mas como mais umha referência que nos situa numha corrente histórica de longo percorrido. A vitória de Carvalho é a das ideias. As que agromam e se transformam em feitos. As que sustentam vidas mais livres e pulam por ganhar o futuro. E isto é o que nom nos contam sobre Carvalho, que por aqui anda, entre nós…
“Ainda que vivim pouco, muito sonhei”
Ricardo Carvalho Calero