A seguir, disponibilizamos um texto da Comissom de Cultura científica reflectindo sobre o papel das vacinas e dos poderes económicos no contexto de pandemia actual. [Disponível também em Issuu] cabeçalho blog

A ciência, o lucro e a COVID

O ethos, ou etos, é um conceito sociológico que se refere ao conjunto de características ou valores de determinado grupo de pessoas. Este conceito tem o seu uso específico em disciplinas como a filosofia, a arte, a linguística ou a antropologia, e variaçons no seu significado ao longo da história. Mas é um conceito interessante em ciência, pois implica que as normas da ciência, para além de serem eficientes na produçom de conhecimento fiável, som também prescriçons morais.

Unha das características deste ethos é o universalismo, é dizer, entender a ciência como umha construçom de todas as científicas e científicos, independentemente da nacionalidade, cultura, raça ou género das mesmas. Outra é o desinteresse, ou a preocupaçom da comunidade científica por acrescentar o seu conhecimento, sem atençom polo lucro. Mais umha: o comunitarismo, entendido como a obrigatoriedade de partilhar o conhecimento científico, para favorecer o debate e a investigaçom.

Isto dizia J. Ziman (1) a finais do século passado, nas suas obras sobre filosofia da ciência, personagem por certo nada susceptível de ser identificado como um radical esquerdista.

Som conhecidos os efeitos perversos de juntarmos investigaçom científica e interesse capitalista. Para além do exemplo armamentístico, as falsificaçons de resultados em investigaçons devidas a pressons de investidores tenhem sido infelizmente notícia nos meios (2). Som mal vistas socialmente, mas nom o estám a ser tanto as práticas que tenhem lugar naa produçom das diferentes vacinas para a COVID-19.

Assistimos a, por umha parte, umha ridiculizaçom das vacinas produzidas em países como Cuba, Rússia e China, com exemplos que raiam no racismo quando nom o abraçam abertamente. Por outra, ao lucro mais infame, tirando proveito dumha desgraça que já conta por milhons as suas vítimas. A farmacéutica Pfizer rejeitou ajudas públicas de distintos países durante a pandemia, pois estas obrigavam a empresa a oferecer garantias de abastecimento e preço na venda posterior. Preferiu nom aceitá-las para ter as maos livres à hora de vendê-la e fixar as suas estratégias para maximizar benefícios em plena pandemia mundial. Por nom falar dos processos de especulaçom associados: um diretivo da Pfizer vendeu o 60 % das suas açons, ganhando 4,7 milhons de euros dias depois de anunciarem os resultados positivos da sua vacina (3).

Perante isto, a dependência do setor privado nos países ocidentais é total. Por colocar um exemplo: o orçamento anual do Consejo Superior de Investigaciones Científicas no estado espanhol nom atinge os 370 milhons de euros anuais (4). O investimento de Pfizer na sua vacina é de 2000 milhons (5). Só por comparar, o investimento em gasto militar do estado espanhol é de 20 000 milhons (6). Nom é que a privada funcione melhor, é que as iniciativas públicas estám a ser afogadas orçamentariamente para favorecer o lucro privado. O resgate bancário custou no estado, por certo, 60 000 milhons de euros (7). Quando as empresas privadas fracassam na sua gestom, também o pagamos entre todas.

Este desmantelamento do setor público vemo-lo dia a dia na saúde e no ensino, onde se reduzem investimentos nas estruturas públicas para favorecer a parasitaçom que exercem as empresas privadas. O exemplo das residências de maiores é paradigmático na Galiza, responsável da perda de muitas vidas desde que começou a pandemia.

Compre pôr em questom o sistema de patentes, a dependência nas nossas sociedades das farmacéuticas privadas e, sobre todo na situaçom atual, denunciar a imoralidade dos que se pretendem lucrar das desgraças de todas. Compre também valorizar os esforços de quem age internacionalmente com valores de solidariedade por cima dos do lucro.

Nom podemos, mais bem ao contrário, renunciar à vacinaçom. De facto, a situaçom actual permite-nos albiscar as incerteças e angústias dum mundo sem vacinas. Mais bem precisamos reivindicar a vacinaçom e os avanços científicos para o benefício social, nom só quando o benefício social coincide com os interesses capitalistas. A postura pró-científica nom é em nengum caso um alinhamento com esses interesses, mas reivindicar a ciência ao serviço dos interesses populares.

E fazê-lo desde a reivindicaçom dos valores dumha prática científica universal, desinteresada e comunitária. Para que uns poucos deixem de aproveitarse do que é de todas.

 

(1) Ziman, John (1976). The Force of Knowledge: The Scientific Dimension of Society. Cambridge University Press. ISBN .

(2) https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/10/19/pesquisador-de-harvard-e-acusado-de-falsificar-resultados-com-celulas-tronco-por-anos.ghtml

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/10/091026_coreanoclonescondenafn

(3) https://www.dn.pt/dinheiro/ceo-da-pfizer-vende-60-das-suas-acoes-e-ganha-47-milhoes-13027135.html

(4) Orçamentos Gerais do Estado 2017

(5) https://www.elmundo.es/economia/2020/11/11/5faae9b3fdddff2b7d8b45a2.html

(6) https://www.publico.es/politica/gasto-militar-espanol-volvera-superar-ano-20000-millones-euros.html

(7) https://cincodias.elpais.com/cincodias/2019/11/20/companias/1574245470_048581.html